Atualidades

Responsabilização do advogado público e os riscos da paralisia administrativa

A Constituição Federal de 1988 consagrou, em seu art. 133, a advocacia como função essencial à administração da Justiça, assegurando a indispensabilidade do advogado (público ou privado) na defesa da ordem jurídica, dos direitos e garantias fundamentais. À advocacia pública (arts. 131 e 132), se atribuiu uma dupla dimensão como função estruturante do Estado Democrático de Direito: defesa do interesse público em juízo (contenciosa) e o assessoramento técnico/jurídico à Administração Pública (consultiva).

No exercício da função consultiva, cabe às procuradorias a manifestação técnica sobre a conformidade jurídica dos atos da Administração, apontando fundamentos, limites e riscos que permitam ao gestor decidir em perfeita sintonia com o ordenamento jurídico.

É nesse contexto que a medida cautelar proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Reclamação nº 69.486, que culminou no afastamento do Procurador-Geral do Estado do Maranhão, ilustre e respeitado professor Valdênio Caminha, reacende um debate que precisa ser enfrentado: quais são os limites da responsabilização do advogado público e quais as prerrogativas que resguardam a independência funcional da Advocacia Pública?

Sem pessoalizar o debate ou comentar caso concreto, para o qual não se tem procuração, impõe-se uma reflexão mais ampla sobre a responsabilização do advogado público. É que o STF já reafirmou, em diversas ocasiões, que o advogado é inviolável no exercício de sua profissão, não podendo ser penalizado em razão da linha argumentativa  a que eventualmente tenha se filiado quando de sua manifestação nos autos de processo administrativo ou judicial, salvo demonstração de dolo, culpa ou erro grosseiro— por todos o MS 24.631/DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 09.08.2007; o MS 27.867 AgR/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 18.09.2012; e, mais recentemente, o ARE 1.235.427 ED-AgR-segundo/SP, Rel. Min. Cristiano Zanin, DJe 16.10.2023.

Essa compreensão, aliás, harmoniza-se com o art. 28 da LINDB, que expressamente condiciona a responsabilização pessoal do agente público, em decisões ou opiniões técnicas, à demonstração de dolo ou erro grosseiro. Na mesma direção, o art. 77, §8º, do Código de Processo Civil reforça essa proteção, afastando do advogado a obrigação de cumprir pessoalmente comandos judiciais impostos à parte representada.

Nessa mesma linha, o Conselho Federal da OAB apresentou ao Supremo Tribunal Federal a Proposta de Súmula Vinculante (PSV) nº 142, ainda em trâmite naquela excelsa Corte, no seguinte teor: “viola a Constituição Federal a imputação de responsabilidade ao advogado pela emissão de parecer ou opinião jurídica, sem demonstração de circunstâncias concretas que o vinculem subjetivamente ao propósito ilícito.” Embora a proposta ainda não tenha sido aprovada, sua formulação revela a preocupação institucional com a necessidade de proteger a independência técnica do advogado público.

Atribuir responsabilidade desmedida aos agentes públicos — especialmente aos pareceristas, longe de proteger a Administração, pode gerar o fenômeno da “paralisia administrativa”, expressão utilizada por Rafael Véras de Freitas em sua obra intitulada “Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos – 1. ed. — São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020”. Trata-se do conhecido “apagão das canetas”, como destacam Fabrício Motta e Irene Patrícia Nohara (in: LINDB no Direito Público – Lei 13.655/2018 – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2020), situação em que o advogado público atua sob o temor constante de punição, deixando de exercer com a firmeza interpretativa que lhe é própria e passa a adotar uma postura defensiva, de autocensura, resultando em pareceres frágeis e incapazes de orientar decisões relevantes, com prejuízo para a eficiência administrativa, princípio consagrado no art. 37, caput, da CF.

Não se trata de defender a impunidade do agente público, mas de preservar a calibração traçada pela Constituição Federal entre as garantias profissionais e a responsabilização legítima. O advogado público, quando atua como parecerista, é o intérprete do Direito, cuja contribuição se afirma justamente na liberdade de oferecer fundamentos técnicos e jurídicos, ainda que estes contrariem expectativas ou preferências momentâneas.

Rui Barbosa já advertia: “a força do direito deve superar o direito da força”. O advogado público não pode se acovardar: sua missão exige firmeza interpretativa, que, nenhuma autoridade, por mais importante que seja, pode constranger, sob pena de abuso de autoridade.

Por isso, como Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e advogado público, sinto-me concitado a jogar luzes sobre o tema, instando o nosso Conselho Federal, em via própria, a sobre ele também se pronunciar, como sempre tem feito em defesa das prerrogativas e garantias asseguradas para nossa profissão.

Avante!

Daniel Leite (Advogado, Procurador do Município de São Luís e Conselheiro Federal da OAB pelo Maranhão).

O artigo foi publicado, em primeira mão, pelo Portal O Informante.

Alex Ferreira Borralho

Alex Ferreira Borralho é advogado e exerce suas atividades advocatícias, principalmente, nas áreas cível e criminal. Idealizou o Instagram Direito em Ordem em 03.01.2022, criando um canal de informações que busca transmitir noticias relevantes de forma sucinta, de entendimento imediato e de grande importância para a sociedade, o que foi ampliado com publicações de artigos semanais no Jornal Pequeno, todos os sábados e nos mais variados meios de comunicação. Esse canal agora é amplificado com a criação do site Direito e Ordem, que deverá pautar, especialmente, os acontecimentos do Poder Judiciário do estado do Maranhão, levando, ainda, ao conhecimento de todos informações sobre episódios diários no âmbito dos tribunais, dos escritórios de advocacia e do meio político e social.
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