Desembargador Raimundo Moraes Bogéa reconhece a inadequação de sua conduta e assina Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com a Corregedoria Nacional de Justiça, por ausência de respeito e consideração com pessoas com deficiência
“Eu acho até que nesse concurso já se devia avaliar se o juiz, quando faz o concurso, tem um filho com problema”. Essa é uma das frases que acabou resultando na assinatura do Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre o desembargador Raimundo Moraes Bogéa e a Corregedoria Nacional de Justiça.
Bogéa teve que reconhecer “a inadequação da conduta a ele imputada em relação ao descumprimento dos deveres de serenidade e moderação, ínsitos à atividade jurisdicional, na medida em que deixou de guardar o respeito e a consideração à dignidade de pessoa com deficiência, à qual a Constituição assegura igualdade de tratamento (CF, art. 1º, III, e 5º, caput), para todos os fins de direito, até mesmo, e principalmente, de agente político”.
Além disso, o citado desembargador se comprometeu “a realizar uma retratação pública em sessão do mesmo órgão do Tribunal de Justiça do Maranhão em que proferida a manifestação que ensejou a abertura das presentes reclamações disciplinares, na primeira sessão a ser realizada após o primeiro dia útil subsequente à homologação do presente termo, devendo o reclamado juntar aos autos comprovação respectiva”, tendo, ainda, que “participar, com aproveitamento, em curso relacionado à temática de enfrentamento ao capacitismo a ser realizado por Escola Judicial de qualquer unidade da Federação, com exceção do Tribunal de Justiça do Maranhão, nos termos do art. 3º, inciso V, do Provimento CNJ 162/2024, com carga horária mínima de 40 horas. O curso deverá ser realizado no período máximo de 12 meses, a contar do primeiro dia útil subsequente à homologação do presente termo, devendo o reclamado, ao final, apresentar respectivo comprovante de aproveitamento no curso;”
Bogéa também concordou com “a condição de suspensão da percepção da gratificação a que faz jus pelo exercício do cargo de Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Maranhão, pelo prazo de 2 (dois) meses, a contar da homologação do presente termo de acordo, nos termos do art. 3º, incisos VI e VII do Prov. 162/2024, comunicando-se o respectivo Tribunal acerca da referida condição.”
O TAC foi ensejado por uma reclamação disciplinar protocolizada no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em face de referido desembargador, pela Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (ANIA/BR).
Direito e Ordem descreve os fundamentos fáticos constantes na petição da mencionada associação, nos seguintes termos:
“No dia 17/05/2023, durante a sessão realizada pelo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Maranhão – TJ/MA, quando os magistrados analisavam o pedido de teletrabalho por feito por um juiz para que pudesse cuidar do filho diagnosticado com autismo, o desembargador proferiu as seguintes falas:
“Eu acho até que nesse concurso já se devia avaliar se o juiz, quando faz o concurso, tem um filho com problema” (1h03min)
Essa afirmação sugere que a presença de um filho com problema de saúde poderia ser considerada como critério de avaliação para o ingresso no cargo de juiz. Isso viola princípios fundamentais de igualdade e não discriminação, presentes na Constituição Federal brasileira e na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que proíbem a discriminação com base em condição de deficiência.
“Porque é difícil o juiz fazer o concurso. Nós já somos privilegiados demais. “Nós vamos sempre privilegiar o juiz e prejudicar o jurisdicionado”. (1h04min)
Essa fala parece sugerir que os juízes são beneficiados em detrimento dos direitos dos jurisdicionados. Embora haja debates sobre a carga de trabalho e a eficiência do sistema judiciário, essa afirmação generalizada pode ser considerada inadequada e desrespeitosa em relação aos direitos das pessoas envolvidas no processo judicial.
“Nós vamos onerar sempre um colega”. (1h04min30s).
Essa declaração não está diretamente relacionada à inclusão de pessoas com deficiência, mas sugere que a presença de um juiz com problemas pessoais ou familiares seria uma carga para seus colegas. Essa visão não leva em consideração as necessidades e os direitos das pessoas com deficiência, incluindo a possibilidade de adaptações razoáveis e suporte para garantir sua participação plena e igualitária na sociedade.
“Sempre irá onerar o juiz da comarca contígua. O juiz da comarca contígua vai sempre responder pelo juiz que não tá presente na comarca. (1h04min46s) e “Nós sempre temos que aquilatar isso. Primeiro: nós vamos sempre onerar um juiz de comarca contígua, porque a videoconferência nunca consegue solucionar todos os casos”. (1h05min08s).
Essas falas parecem indicar que a presença de um juiz com responsabilidades familiares ou problemas de saúde pode impactar negativamente a eficiência do sistema judiciário. No entanto, é importante ressaltar que a legislação e as políticas de inclusão devem garantir a igualdade de oportunidades e a acessibilidade para as pessoas com deficiência, incluindo a adoção de medidas razoáveis para acomodar suas necessidades.
“Eu respeito o problema de saúde do filho do juiz, mas nós temos que aquilatar a importância do trabalho do juiz e o jurisdicionado.” (1h05min26s)
Embora seja válido reconhecer a importância do trabalho do juiz e a necessidade de garantir o bom funcionamento do sistema judiciário, é fundamental também respeitar e proteger os direitos das pessoas com deficiência. A legislação brasileira e os tratados internacionais enfatizam a igualdade de direitos e a não discriminação, inclusive para as pessoas com deficiência.
O julgamento sobre o tema se inicia ao 51min47s.
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que a deficiência é uma característica da pessoa e não uma doença, e a Lei 12.764/2012 garante à pessoa autista a mesma proteção concedida para pessoas com deficiência.
Após tomar conhecimento da repercussão que tal fala tomou, o desembargador emitiu nota de esclarecimento afirmando que seu voto foi retirado de contexto. Data vênia, não há contexto que possa justificar tal fala, permeada de capacitismo.
Ao proferir seu voto, o magistrado mostrou ignorânica sobre os direito das pessoas com deficiência, especialmente pessoas autistas. Suas falas levantam graves problemas éticos.
Ao sugerir que o concurso para juiz deveria avaliar se o candidato possui um filho com problema de saúde, há uma clara violação dos princípios de igualdade e não discriminação. Essa proposta discriminatória desconsidera o direito fundamental das pessoas com deficiência e seus familiares de serem tratados de forma igualitária. Além disso, ao estigmatizar os juízes como privilegiados e insinuar que a presença de responsabilidades familiares ou problemas de saúde é uma “oneração”, falta empatia e compreensão em relação aos desafios enfrentados por indivíduos nessa situação. Essa postura desrespeita os direitos das pessoas com deficiência, nega sua inclusão plena na sociedade e compromete a imparcialidade e a justiça nas decisões tomadas pelos juízes afetados por tais circunstâncias. Em suma, essas falas refletem uma atitude discriminatória, estigmatizante e desrespeitosa, em contradição com os valores de igualdade, inclusão e respeito aos direitos humanos.
A sociedade é diversa e da mesma forma são, ou deveriam ser, os Tribunais, inclusive o do Maranhão.
Não pode aquele Tribunal, a pretexto de uma pseudoproteção da sociedade, aniquilar direitos, pois em nenhum momento as pessoas com deficiência e seus familiares exigem tratamento privilegiado. O que se exige é o respeito à direitos básicos e necessários para o respeito à dignidade humana.
Analisando a reprovável fala do desembargador se percebe claramente que sua preocupação não fora com o jurisdicionado, mas corporativista.
É perfeitamente possível o Tribunal compatibilizar o direito dos jurisdicionados ao acesso à jurisdição com o direito as pessoas com deficiência familiares de juízes e de juízes ou juízas com deficiência.
Assim, questiona-se:
O que o Tribunal de Justiça do Maranhão está fazendo para garantir o respeito aos direitos dos servidores com deficiência e que tenham familiares com deficiência?
Que tipo de investimentos estão sendo feitos?
Se há uma preocupação com a dificuldade de acesso à jurisdição nas comarcas de interior daquele Estado, o que está sendo feito para mudar isso?
Durante a pandemia o trabalho remoto não impediu o acesso à jurisdição e não prejudicou a produtividade dos magistrados e servidores.
A presença nos fóruns não é uma garantia de produtividade. O que precisa ser combatido com veemência é a falta de produtividade, pois esta sim é o entrava à obtenção da justiça.
Ter um filho ou uma filha com deficiência não é impeditivo para o exercício de qualquer profissão, inclusive uma tão essêncial para a democracia quanto à magistratura.
Aliás, é importante que nos quadros dos tribunais se respeite a diversidade, incluindo nos quadros pessoas com deficiência e seus familiares, evitando-se assim, falas lamentáveis como essas.
Se o órgão especial está tratando um familiar de autista dessa maneira, como os magistrados e servidores autistas estão sendo tratados? Que tipo de adaptações estão sendo feitos nos concursos públicos daquele Estado?
Vale lembrar que a Convenção sobre Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ao introduzir o modelo social da deficiência, estabeleceu que toda sociedade tem o dever de promover a inclusão social.
O acesso aos serviços de saúde, habilitação e reabilitação, especialmente de um criança, são necessários para sua inclusão e para o respeito à sua dignidade.
As falas do desembargador não atingiram apenas o magistrado e seu filho (a), mas todos aqueles que são ou convivem com pessoas com deficiência…”.
Direito e Ordem se coloca a disposição do Desembargador Raimundo Moraes Bogéa para a postagem do que achar necessário.
Veja as íntegras da petição inicial e do Termo de Ajuste de Conduta (TAC).
Referências: Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Desembargador Raimundo Moraes Bogéa.
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